AS 10SHAKESPEAREANAS E OS ASTROS



As referências astrológicas são abundantes no texto Shakespeareano, o que  não é de se estranhar, pois astrologia- como a alquimia e o hermetismo em geral - fazia parte da cultura do século XVI e fascinava não só as classes menos privilegiadas, como também a aristocracia, os artistas e filósofos.
William Shakespeare nasceu a 23 de abril de 1564, em Stratford-on avon, e não se sabe se algum astrólogo daquele tempo fez o seu horóscopo. Mas o própio Shakespeare tratou de comemorar o decanato sob o qual nasceu, da mesma forma que Dante celebrou o seu na "Divina Comédia". Em "As Alegres Comadres de Windsor"  ele registrou:
(Ato V-Cena 1-3,4)
"Dizem que há uma divindade nos números impares, ou no nascimento, na fortuna, ou na morte".
E na peça "Noite de Reis":

Sir Andrew - Vamos nos meter em uma farra qualquer?
Sir Toby- E o que mais haveríamos de fazer? Não nascemos sob o signo de Touro?

Shakespeare 
Na época de Shakespeare, a astrologia gozava de alto conceito em todas as classes sociais. Tanto os nobres como os plebeus consultavam astróloga e estavam familiarizados com os conceitos astrológicos. O astrólogo mais famoso da era elizabetana era John Dee, que teve como Cliente a própria Rainha Elizabeth. Ele se reunia frequentemente coma a rainha e seus cortesãs, aconselhando-os no dia-a-dia. Assim, não é surpreendente que Shakespeare fosse tão versado em astrologia. Aliás, diz-se que Próspero,  personagem central de a Tempestade, foi baseado em John Dee...
São encontradas mais de cem referências astrológicas em todas as 37 peças de Shakespeare, e muitas das ações dos seus personagens são favorecidas ou dificultadas pelas estrelas. Em seis de suas peças os signos do zodíaco são mencionados e os planetas responsabilizados até mesmo por desastres. Alguns dos seus personagens foram governados por estrelas particulares: Póstumo nasceu sob a influência do planeta benevolente Júpiter e, assim, teve um destino favorável ao térmion da peça. Antônio, em Julio Cezar, declara que a sua primeira derrota aconteceu porque as estrelas o tinham abandonado e culpa o eclipse da lua pela sua derradeira queda. Outro personagem, Monsieur Parolles, nasceu sob a influência do beligerante planeta Marte e por isso tornou-se soldado:




TUDO ESTÁ BEM, QUANDO ACABA BEM

HELENA- Monsieur Parolles, você nasceu sob uma estrela caridosa.
PAROLLES- Nasci sob Marte.
HELENA- Eu acho que foi especialmente sob Marte.
PAROLLES- Por que  debaixo de Marte?
HELENA- As guerras o seduziram, para isso é preciso que tenha nascido debaixo de Marte.
PAROLLES- Quando ele estava predominante?
HELENA - Acho, por certo, que estava retrógrado.

Estes exemplos e outras tantas passagens astrológicas que permeiam a produção Shakespeareana mostram que o dramaturgo não só conhecia a astrologia, como se inspirava nela para a construção do carácter e de personalidade de seus personagens. A profunda compreensão da motivação do comportamento humano de Shakespeare somava-se ao conhecimento igualmente profundo do relacionamento entre os astros e os homens, como demonstra numa das falas de "Othelo", atribuindo a loucura à influência da Lua:

OTHELO, Ato V, Cena II, 109-11 
Isso é um erro da lua;
Ela se aproxima mais da Terra do que seu hábito,
E enlouquece os homens.

Othelo - Lawrence Fischburne e Kenneth Branach
Uma crença que antecipou os modernos estudos psiquiátricos sobre o papel desempenhado pela lua na agressividade humana e nos distúrbios mentais. Os seus personagens tem tal convicção nas influências astrais, que todas as suas falhas e desastres estão relacionadas a elas:

Insuportável peso desta hora!
Devia haver, parece, um grande eclípse
De sol e da Lua, e que o globo atônito
Devia abrir a boca ante o havido.

Observa-se que em todas as suas peças ele especulou sobre o destino individual relacionando-o com as fases da lua ou  posição das estrelas. Há também comentários frequentes de seus personagens ao destino das dinastias e as fases da história em sincronicidade com as fases da lua:

REI LEAR, Ato I, Cena II, 112-9

" os recentes eclipses do sol e da lua não nos pronunciam bem: embora a filosofia natural possa explicá-lo de um modo ou outro, mesmo assim a natureza se sente castigada pelo que acontece. O amor esfria, a amizade decai, irmãos separam-se: nas cidades, motins; nos países, discórdias; nos palácios, traições; e se quebra a ligação que há entre filhos e pais."

REI LEAR- Ian Mackellen
A renascença foi um período privilegiado para ocultismo e a astrologia. Com o desmantelamento da fé medieval e o surgimento de uma postura filosófica baseada na investigação empírica e na liberdade de pensamento, o espírito volta-se para uma sabedoria atemporal, no campo do misticismo. É a época em que a maior parte dos escritos reflete uma busca pelo absoluto, com a redescoberta dos mistérios da antiguidade greco-romana; a filosofia gnóstica, a alquimia, o rosacrucianismo, a Cabala fascinam os escritores e um grande número de filósofos e intelectuais. Isto por si só explicaria apersistência do sobrenatural nas peças de Shakespeare, bom como as constantes referências astrológicas. Mas, afora essas circunstâncias temporais, o Bardo era um arguto psicólogo e como tal fazia uso das ferramentas de que dispunha em seu tempo. E a astrologia não é a mais antiga forma de conhecimento psicológico que o homem conhece? Assim ele descreve o perfil de uma alma criminosa:


(“Henrique IV”, parte I, 1, ii, 15-43)
“Pois nós, que batemos carteiras, nos guiamos pela lua e as sete estrelas, e não por Febo, aquele ‘lindo cavaleiro errante’… Pela Virgem, então, meu doce moleque, quando fores rei, não deixes que nós, escudeiros do corpo da noite, sejamos chamados de ladrões da beleza do dia: deixa que sejamos os guardas-florestais de Diana, cavalheiros da sombra, favoritos da lua; e que os homens digam que somos homens de bom governo, sendo nós governados como o mar por nossa casta ama, a lua, sob cujo auspício nós roubamos.”


Em Romeu e Julieta (II, ii, 107-11):
Romeu: Eu juro, pela lua abençoada,
Que banha em prata as copas do pomar…
Julieta: Não jures pela lua, que é inconstante,
E muda todo mês em sua órbita,
Pro seu amor não ser, também, instável.

Julius Caesar

Mais uma vez a Lua é chamada a justificar os desvios de comportamento e a inconstância dos sentimentos humanos. E Marte, o astro da guerra, para explicar a mudança de curso da batalha:

(“Henrique VI”, parte I, 1, ii, 1-4)
O real curso de Marte, no céu,
Como na terra não é conhecido.
Inda ontem, brilhava pr’os ingleses;
Hoje ganhamos nós, com o seu sorriso.


O princípio alquímico expresso na frase “o que está em cima é igual ao que está embaixo”, encontra na correlação astrológica sua expressão ideal.
Apesar das evidências, há quem veja em Shakes­peare um tom crítico em relação à astrologia. Tornou-se célebre a citação das palavras de Cássius, em “Júlio César”, quando se quer ironizar a crença no determinismo astral:

Os homens raramente são senhores dos seus destinos. 
O erro, caro Brutus, não está nas nossas estrelas. 
Mas em nós próprios, porque somos subordinados.”

Na verdade, Shakespeare usou a astrologia de modo mais profundo, que vai além de simples e vagas referências “às estrelas”.
O conhecimento astrológico do dramaturgo surpreendeu muitos pesquisadores que se debruçaram sobre a sua obra. John Addey observou que Shakespeare constantemente fez uso das referências astrológicas como uma maneira de demonstrar que o comportamento humano deveria refletir a ordem ideal e a harmonia do universo, crença profundamente enraizada na cultura de sua época.
Romeu e Julieta
Henrique IV


(“Júlio César”, V, iii, 23-5)


“Essa é a maravilhosa tolice do mundo,
 que, quando as coisas não andam bem
 – muitas vezes por nossa própria conduta – 
culpamos, por nossas desgraças, o Sol, a Lua e as estrelas:
 como se fôssemos patifes por necessidade; 
todos por compulsão celeste;
velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio esférico;
bêbedos, mentirosos e adúlteros
pela obediência forçosa a influências planetárias;
e tudo o que é ruim em nós é atribuído à influência divina:
ótima escapatória para o homem, esse mestre da devassidão, 
A Tempestade
responsabilizar as estrelas por sua natureza grosseira. 
Meu pai se juntou à minha mãe sob a cauda do Dragão 
e meu nascimento se deu sob a Ursa Maior; 
daí eu ser violento e lascivo. 
Por Deus, eu teria sido o que sou, 
ainda que a mais virginal estrela do firmamento
houvesse brilhado por ocasião da minha bastardização”
Neste dia eu nasci: fechou-se o círculo.
E onde comecei, hei de acabar;
A minha vida agora já correu.
Quem ler atentamente as peças de Shakespeare encontrará abundantes referências astrológicas. Abaixo, algumas delas:

“São as estrelas,
As estrelas no céu que nos governam.” (Rei Lear, IV, iii, 35)

“Quando os mendigos morrem nenhum cometa aparece; eles brilham nos céus somente quando os príncipes morrem.” (Júlio César)

“Saturno e Vênus em conjunção neste ano! O que diz o almanaque sobre isso?” (Henry IV)

"O próprio céu, os astros e este mundo



A comédia dos Erros
Observam grau, prioridade, escala,
E curso, e proporção, forma e rodízio,
Comando e posto, em toda a linha de ordem.
Em consequência, vede o sol-planeta
Posto em nobre destaque em sua esfera,
Em meio aos outros, cujo olhar propício
Corrige os erros dos planetas maus
E domina e comanda, como um rei,
Sem pôr limite entre o bem e o mal.
Mas quando os astros entram em desordem,
Que pragas, que presságios, que motins,
Que revoltas no mar, tremor na terra,
Tempestade nos ventos, medo, horrores,
Perturbam, quebram rasgam as raízes






Macbeth
Da unidade e calma dos Estados.
Se acaso se destrói a hierarquia,
Que é a escada de todo alto desígnio,
Toda a empresa se abala. Como podem
Classes de escolas, ou comunidades,
Pacífico comércio entre cidades,
A primogenitura e o nascimento,
Prerrogativas, cetros e coroas,
Senão por graus manter-se onde merecem?
Remova-se esses graus, falhe essa nota,
E vejam que discórdia! As coisas entram
Em conflito gratuito: as águas, soltas,
Erguendo-se mais alto do que as praias,
Tornam em lama todo o globo sólido;
O mando entrega-se à imbecilidade,
E o rude filho fere e mata o pai.
Seria a força o certo: o certo e o errado,
De cujas forças a justiça nasce,
Perderiam o nome, co’a justiça.
Então, tudo se enquadra no poder,
O poder, na vontade e no apetite;
E o apetite – lobo universal –
Baseado no poder e na vontade,
Terá co’a força o mundo como presa,
E acabará comendo-se a si mesmo.
(Troilus e Créssida)

Notas:
John Dee (1527-1608), astrólogo, mago e ocultista. Precursor das experiências no campo da percepção extrasensorial, tornou-se conselheiro e confidente da rainha Elizabeth, que o ouvia não só em questões referentes a assuntos de Estado como também em problemas pessoais. Além de astrólogo da rainha, também foi espião do Almirantado (sob codinome 007!). Um dos homens mais cultos de seu tempo, praticou a astrologia com considerável competência, além de dedicar-se também à alquimia. A rainha Elizabeth, que governou a Inglaterra de 1558 a 1603, como tantos outros so­be­­ranos de sua época, tam­bém era uma apaixonada pe­lo ocul­tismo e pela metafísica. Sabe-se que patrocinou em vida o as­trólogo John Dee, célebre por alardear comunicação com anjos e espíritos. A própria rai­nha tinha crises de misticismo que só aumentaram com a velhice. Quando caiu doente, em 1603, quis saber o que lhe re­servavam as configurações astrais e foi recomendada a mudar-se para Richmond e evitar Whitehall. Visões fúne­bres a haviam alertado sobre o fim próximo: tinha visto o seu próprio corpo descarnado, envolto numa luz resplandecente. Em Richmond, as alucinações e pesadelos continuaram, o que a levou a sujeitar-se a uma sessão de necromancia e exor­cismo, onde se viu projetada para fora do seu corpo. Durante a sessão, teria sido encontrada uma carta da Dama de Copas, com um prego atra­vessado na testa, que a prendia embaixo da cadeira da rainha.

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